Mauro Luis Iasi
Militante do PCB – SP
Professor Titular de Ciência Política da
Faculdade de Direito de São Bernardo
I. Ponto de Partida
Toda conjuntura política é a continuidade de um movimento histórico, não podendo ser compreendida apenas pelos elementos que se delineiam no quadro presente. O Brasil de hoje é o resultado de uma luta de classes e da disputa de projetos políticos materializados pelas diferentes classes que atuaram em cada período de nossa história.
O capitalismo brasileiro desenvolveu- se a partir de uma integração subordinada à ordem imperialista, fato que marcou não apenas a identidade da formação social, a estrutura de classes e o Estado, mas em grande medida a dinâmica da luta de classes no Brasil. Vivenciamos a formação e organização de um proletariado urbano de maneira mais profunda e rápida que a consolidação de uma burguesia nacional, da mesma forma que o desenvolvimento do capitalismo combinou-se com a permanecia de estruturas agrárias tradicionais e a sobrevivência de lógicas patrimonialistas e fisiológicas das antigas elites oriundas do escravismo e do domínio dos cafeicultores.
Tal quadro levou a esquerda brasileira a formular, muito influenciada pelas elaborações da IC, a tese da etapa democrática nacional da revolução brasileira. Segundo a avaliação das vanguardas de esquerda, neste momento hegemonizadas principalmente pelo PCB, o desenvolvimento do capitalismo brasileiro e da própria Nação, estariam obstaculizados por entraves estruturais que no caso seriam o latifúndio, a dependência imperialista e a forma patrimonialista do Estado, ou em outra versão, seu caráter bonapartista (realização pelo alto da revolução burguesa).
Partindo desta constatação, os comunistas defendiam uma estratégia de revolução nacional-burguesa, na qual o proletariado deveria aliar-se à setores da burguesia nacional e progressista contra o latifúndio e o imperialismo, realizar uma etapa democrática para depois acumular forças para uma revolução socialista.
O auge desta formulação levou o PCB e a classe trabalhadora brasileira à derrota de 1964 e ao longo período da ditadura. Ao contrário da leitura hegemônica da esquerda (com raras exceções, como a POLOP, todas as forças de esquerda, inclusive a maior parte dos movimentos de resistência armada, defendiam a lógica da etapa democrática), o capitalismo brasileiro desenvolveu- se em aliança pactuada com os setores que supostamente deveriam entravar este desenvolvimento, ou seja, o latifúndio e o imperialismo.
O Brasil não poderia se caracterizar pelo dualismo do atraso e a modernidade (aliás de inspiração weberiana, como na tese do Brasil Arcaico e Moderno), mas pela forma particular de manifestação do capitalismo em sua fase mais desenvolvida: o imperialismo.
O processo de democratização com o final da ditadura na década de 70, reatualizou essa polêmica. Florestan Fernades, afirmando que o ciclo das revoluções burguesas haviam se encerrado, definia o caráter socialista da revolução, no entanto, diante da incompletude de tarefas do ciclo burguês inconcluso, criou a expressão de uma revolução socialista com tarefas democráticas em atraso. Tal formulação embasou a concepção política do PT no primeiro momento de sua história, buscando diferenciar- se da formulação clássico do PCB de uma revolução democrática Nacional, pela afirmação de uma revolução democrática Popular.
A diferença é que na formulação democrática popular o leque de alianças para realizar, ao mesmo tempo, as tarefas em atraso e a ruptura socialista, não poderia incluir a burguesia e sim sustentar-se num bloco fundado nos trabalhadores assalariados (urbanos e rurais) e demais setores explorados pelo capitalismo, incluindo, no máximo, setores médios empobrecidos ou em contradição com a lógica do capital.
Pouco a pouco, no entanto, o PT transitou desta tese para um pragmatismo político que inverteu a relação entre estratégia e táticas, aproximando- se não da tese de uma revolução democrática como momento de acúmulo de forças para uma revolução socialista, mas para o amoldamento aos limites da ordem do capital, aceitando a tese da insuperabilidade das leis econômicas capitalistas e a virtude universal de sua ordem institucional.
O amoldamento do PT não consiste apenas em um desvio tático, um equivoco de direções ou na traição de pessoas, mas implica numa profunda inflexão estratégica que altera o caráter de classe do projeto antes defendido. Ao defender a refundação de um pacto social que inclui a burguesia de qualquer porte (ou seja incluindo a monopolista) , o agronegócio e, de fato (ainda que na formulação os exclua) os setores do capital financeiro, o PT se envolve não em uma aliança para sustentar seu programa histórico, mas assume os pressupostos programáticos de seus aliados.
A inflexão política e estratégica é ainda acompanhada de alterações qualitativas na composição de classe do partido, deformações profundas na organização levando á burocratização acentuada das instâncias e rompimento com a frágil democracia interna que mantinha as direções sobre tênue controle de suas bases. Estavam dadas as bases para a autonomização da direção burocrática e a substituição da classe como sujeito político.
II. Correlação de forças, alianças e governabilidade
As décadas de 80 e 90 marcaram a correlação de forças e a disputa de dois projetos políticos que guardavam estreita relação com os interesses de classe em jogo. De um lado um bloco burguês que articulava as reformas necessárias para manter renovada a acumulação capitalista nas novas condições do capital mundial; de outro a resistência dos setores populares hegemonizados pelo proletariado que apontavam para a raiz capitalista dos entraves vividos e, portanto, para uma alternativa democrática popular de horizontes socialistas.
A estratégica do bloco democrático popular constitui-se em formar dois braços de ação divididos na ação social de massa que buscava vincular demandas imediatas com o caráter anticapitalista e socialista da proposta programática, e em outro campo na ocupação de espaços institucionais via eleições como forma de potencializar a primeira ação e criar as condições para, em se chegando a esferas mais estratégicas de poder institucional, realizar reformas de caráter anti-monopolista, anti-latifundiá rio e anti-imperialista. Dado o caráter destas reformas e da esperada reação dos setores atingidos, a plena execução do programa democrático popular e o início da transição socialista eram vistos como elos e um mesmo processo.
As derrotas eleitorais do PT para Collor e depois FHC, subverteram este programa, colocando em primeiro plano a necessidade de ganhar as eleições às custas de uma ampliação do leque de alianças e um rebaixamento programático. Diante da resistência dos setores de esquerda e da própria inércia da base partidária, esta inflexão só conseguiu se consolidar plenamente no quadro da disputa eleitoral de 2002, ainda que tenha amadurecido em um longo processo que se inicia no 7 Encontro Nacional do PT em 1990.
O PT chega ao governo em 2002 com outro projeto estratégico: democratizar as relações capitalistas e o Estado. A revolução democrática popular vira apenas democrática. A justificativa é a necessidade eleitoral de ampliar as alianças e a falta de “governabilidade” para levar à frente o governo. De fato o resultado eleitoral, não por acaso, mas pelo próprio funcionamento da institucionalidade burguesa que está aí para isto mesmo, gerou um quadro no qual a vitória presidencial não foi acompanhada de um resultado proporcional no Governo dos Estados e no Parlamento.
Em um primeiro momento o núcleo do PT no governo (que substitui de fato a direção partidária) construiu uma estratégia de governabilidade que consistia em atrair setores do PMDB e do próprio PSDB para uma aliança de centro-esquerda (como se comprova pelas declarações aparentemente estranhas durante o ano de 2003 segundo as quais PT e PSDB futuramente se converteriam em um único partido, etc.).
Diante do fracasso desta alternativa, pelo caráter gelatinoso e oportunista do PMDB e pela definição do PSDB em manter-se na oposição, o núcleo dirigente manteve a estratégia mudando as siglas pela inclusão do PTB, PP e outras, indiferente ao fato que isto implicava em uma aliança, de fato, já de centro-direita.
Mesmo uma aliança espúria como esta poderia se justificar pela necessidade de implantar o projeto popular, no entanto a governabilidade seria para dar estabilidade a um governo que iniciava a execução de um projeto que não apenas não era popular, mas que representava em sua essência a continuidade do projeto conservador, tanto em seus aspectos macro-econômicos, suas opções de desenvolvimento, como na continuidade das reformas neoliberais exigidas pela lógica da acumulação de capital. Portanto, um governo que passou a operar uma política CONTRA a classe trabalhadora.
A governabilidade alcançada serviria, não para aprovar elementos pactuados de um programa que tendia aos interesses populares ainda que limitado à reformas burguesas, mas para viabilizar as exigências dos setores do grande capital: a reforma da previdência, as parcerias público e privadas, a liberação dos transgênicos, a lei de falências, a flexibilização dos direitos trabalhistas.
Não se tratou de uma aliança com setores progressistas para evitar a hegemonia de setores mais conservadores, mas de uma aliança com setores conservadores (como podemos qualificar Sarney, Maluf e Jefferson, senão como o que há de mais conservador e deformado na política brasileira) para disputar a direção do governo e seu horizonte burguês contra a antiga direção do PSDB-PFL.
O resultado desta alternativa foi o desarmar da classe trabalhadora para a disputa real da luta de classes, subordinando- a a defesa de um governo que de fato representava um projeto que não era mais o seu.
Não é verdade que era a única alternativa. A governabilidade e a sustentação de um governo popular não pode se restringir ás alianças e acertos na corrompida estrutura parlamentar representativa da ordem burguesa, o que, aliás, levou a direção do PT ao pântano da troca de favores, da distribuição de cargos no governo, da aprovação das emendas de parlamentares, ao financiamento de campanha dos “aliados” e a mais descarada corrupção.
Um verdadeiro governo popular pode e deve buscar compensar a ausência de apoio institucional na organização autônoma das massas e na luta das classes que sustentam seu projeto, como provam as experiências em curso na Venezuela, na Bolívia e Equador, assim como toda a experiência histórica dos trabalhadores. No entanto, o governo Lula em nenhum momento chamou á classe trabalhadora a se organizar e participar ativamente na execução das tarefas de governo e na sustentação de qualquer política. O papel dos trabalhadores se reduziu a votar, e continuar votando.
No lugar da sustentação popular o governo lançou mão da cooptação dos movimentos e instituições organizadas da classe, seja pela liberação pontual de verbas, distribuição de cargos, seja pela negociação dos interesses da cúpula burocrática, ainda que abrindo mão dos reais interesses daqueles que estas diziam representar, como fica claro na negociação da reforma trabalhista e sindical com as centrais que uma vez garantindo seu poder negociam a flexibilização dos direitos.
A metamorfose que ocorreu é que uma força política que pretendia inovar a forma de fazer política acabou por se amoldar à forma antiga. Estamos diante de uma forma muito conhecida: manipular o apoio de massa para sustentar um projeto que esconde atrás do véu enganoso dos interesses “nacionais”, do “interesse comum”, os reais interesses da burguesia e da continuidade da acumulação capitalista.
III. Classes, correlação de forças e projetos políticos.
O amoldamento do PT na ordem do capital (ao que parece a resistência dos setores de esquerda do PT não estão conseguindo reverter tal tendência), cria um quadro desfavorável na correlação de forças para o próximo período.
Uma vez que a luta de classes continua se estruturando a partir da contradição não resolvida no ciclo anterior, ou seja, a manutenção da acumulação capitalista e suas diversas conseqüências, ou a superação revolucionária da ordem do capital e a atualização de uma alternativa socialista, o enfraquecimento da expressão política da classe trabalhadora só pode fortalecer o pólo do capital.
Este enfraquecimento não se deu por esquerdismo dos que romperam com a sustentação da política do atual governo, mas exatamente pela adesão do PT ao projeto que sempre combateu, uma vez que se pede a adesão das forças de esquerda para sustentar o retorno à um projeto popular, mas para sustentar o atual rumo como fica evidente pelas definições que se anunciam no segundo mandato de Lula e o aprofundamento de sua governabilidade á direita.
A inflexão à direita da expressão política da classe não pode ser a única responsável pelo enfraquecimento desta classe no período. De fato vivemos uma derrota profunda que é a base material da inflexão política e que pode ser resumida em dois fatores: a reestruturação produtiva do capital levada á termo nas décadas de 80 e, sobretudo, nos anos 90, e o desmonte dos países em transição socialista á partir do colapso da URSS.
Estes fatos nos colocaram em uma defensiva prática e teórica e tornaram base para as deformações que culminaram no amoldamento do PT à ordem. No entanto tal amoldamento não é apenas uma mera conseqüência, mas um fator que acabou por aprofundar a derrota e consolidar a visão hegemônica que é quem do reformismo social democrata.
A classe trabalhadora que havia no início do ciclo encontrado sua fusão e passava de sua conformação de classe em si para o amadurecimento de um projeto político que a faria transitar para a possibilidade de converter-se no sujeito histórico portador de um projeto próprio de sociabilidade para além do capital, volta a se fragmentar, diluir-se em indivíduos isoladas com projetos parciais amolados aos limites da atual ordem do capital.
Ao mesmo tempo a burguesia recompõe-se como classe e encontra em seu Estado o zeloso defensor dos seus interesses gerais, liberando-a para a livre concorrência que garantirá seus interesses particulares. Não precisa impor seus interesses na luta contra a resistência direta dos trabalhadores, pode fazê-lo por meio do Estado que tem a capacidade de transformar seus interesses particulares apresentando- os como se fossem gerais.
É o que ocorre com o atual PAC. Todas e cada uma das medidas são claras manifestações do interesse em potencializar o crescimento econômico como condição prévia para qualquer demanda social. O crescimento interessa a todos. E tudo isto a despeito que o crescimento da economia capitalista brasileira se deu nas últimas cinco décadas produzindo a mais brutal concentração de renda, às despeito do fato de que entre 1940 e 1990 o PIB brasileiro quase quintuplicou enquanto que o salário mínimo perdeu pais de 60% de seu valor, a despeito de no período intenso de crescimento os 20% mais pobres perderam metade de sua renda passando de 4% do PIB para 2% enquanto os 10% mais ricos passaram de 39% para 53% do PIB no mesmo período, a despeito da transformação do latifúndio tradicional e agronegócio concentrar renda, agredir o meio ambiente e empobrecer a população rural.
A correlação de forças se tornou desfavorável aos trabalhadores porque sua expressão política produziu uma distorção, criando uma aliança pluriclassista no âmbito das expressões políticas e do Estado que não corresponde aos interesses de classe reais em disputa. Enquanto o PT diluído numa aliança de centro direita disputa a hegemonia da direção do projeto burguês com setores de direita, a classe trabalhadora e uma real alternativa de esquerda parecem não existir no cenário político. O debate se resume a quem vai executar as medidas de consenso e com que identidade: será as reformas que garantam a continuidade da acumulação de capitais dirigidas por forças “progressistas” ou por forças “reacionárias”.
Mas, não estaria a classe trabalhadora inserida nesta correlação de forças apoiando o governo Lula pela lógica sensata de evitar a alternativa neo-liberal? Não seria apenas uma pequena parte da esquerda radical que teria por seus próprios equívocos se colocado fora do jogo?
Caso seja verdade esta versão não teremos muitos problemas. A esquerda é pequena e débil, dividida e desorganizada, tendo com muita dificuldade mantidas relações e vínculos com as massas e setores reduzidos da classe trabalhadora, portanto, até por sua dimensão não poderia impor uma alteração significativa na correlação de forças que, portanto, deveria estar satisfatória aos trabalhadores.
No entanto, não vemos uma correlação favorável na qual as massas trabalhadoras em alianças com setores “progressistas” como o PP de Maluf, o PMDB de Sarney, os empresários do agronegócio e outros setores “populares”, impõe seus interesses contra o PSDB e o PFL. Pelo contrário, é o próprio PT que tem apresentado as demandas que interessam ao grande capital, ou seja, resta apenas a pergunta: quem representa a esquerda na suposta aliança de centro esquerda?
O que de fato ocorre é que a aliança das expressões políticas não significa a alianças das classes que estas buscam representar. O PT participa do pacto consensual das classes dominantes representando os trabalhadores, mas não apresenta os interesses destes trabalhadores. Ao mesmo tempo o PSDB se coloca como oposição ao governo, enquanto sua classe de fato o sustenta, pois são seus interesses que ali se expressão.
O desdobramento no curto e médio prazo desta correlação de forças só pode favorecer aos setores do capital que tem não apenas a hegemonia da política aplicada no atual governo como a alternativa de oposição que pode sucedê-lo para continuar mantendo a mesma política.
Não nos surpreenderíamos se Lula articular ele mesmo esta incrível passagem para um governo, por exemplo de Aécio Neves, pedindo como é óbvio apoio aos trabalhadores no sentido de evitar o “retrocesso” ou algum fantasma de coisa pior.
IV. O Longo prazo e o horizonte da estratégia
Ao garantir, no médio prazo, as condições da continuidade da acumulação de capital com uma governabilidade de centro direita, impondo uma derrota à classe trabalhadora, o atual governo não prepara as condições para um governo popular, mas aplaina o caminho para a continuidade do domínio burguês.
Ao abrir mão de um governo popular, nos moldes ainda que limitados da proposta democrática popular (como defendem os valentes companheiros da esquerda do PT, mas que foram derrotados em uma disputa na qual não encontramos nenhuma evidência que possa ser revertida), o núcleo dirigente do PT transformou o horizonte estratégico na estratégia do horizonte, ou seja: uma linha imaginária que se afasta quanto mais dela nos aproximamos.
A alternativa socialista se transformou numa meta moral platonicamente irrealizável. Como disse Lula em um debate: um Estado de espírito. Os socialistas seriam aqueles que administram com espírito de justiça, democracia e solidariedade a economia capitalista, enquanto que os burgueses são mesquinhos e gananciosos.
A crítica socialista se converte em uma crítica moral. Nós vimos onde foi parar este “genoino” moralismo.
Abdicando de uma alternativa popular de governo que tencionasse os limites da ordem e apoiado na organização popular e da classe trabalhadora aprofundasse a dinâmica da luta de classes criando condições de uma ruptura revolucionária, a atual alternativa desarma a classe, desmobiliza suas organizações (pela cooptação ou pelo abandono) e fortalece a burguesia preparando o terreno para que a classe burguesa retome o controle direto de seu governo. Apesar dos interesses burgueses não estarem de nenhuma forma ameaçada (O ministro tarso Genro respondendo a uma pergunta de um reporte da Veja afirmou que o RISCO É ZERO!), é evidente que os patrões não confiam em seus esforçados serviçais e prefeririam expressões políticas mais confiáveis.
No médio prazo, portanto, a atual opção de caminho político leva não à possibilidade de um governo popular, mas a retomada de governos diretamente burgueses.
Ocorre que este desfecho, consolidando o governo atual e preparando o retorno diretamente burguês, mais que desarma a classe trabalhadora, a derrota e viabiliza a continuidade da acumulação capitalista. Esta é a boa notícia.
A continuidade da exploração capitalista com o grau de contraditoriedade que daí deriva, em um momento histórico de contradição entre o avanço das forças produtivas e as atuais relações sociais de produção que ameaçam a inviabilizar a reprodução social da vida em escala planetária, produzirá contradições que atacaram diretamente a classe trabalhadora e suas condições de vida e trabalho. A contradição entre as medidas do PAC e os funcionários do ministério do meio ambiente não é mais que uma pálida expressão desta contradição em movimento.
Isto significa que no médio e longo prazo (infelizmente minha avaliação, ao contrário do que supõem alguns, é que tal processo não se dará no curto prazo) estaremos vivendo um novo processo de fusão da classe trabalhadora, primeiro por suas lutas específicas, depois cada vez mais em confronto com a lógica do capital reatualizando a possibilidade de converter-se em classe para si na defesa da alternativa socialista.
Tal processo poderá se acelerar pela natureza e dinâmica da crise do capital (tanto nacional como internacional) e pela capacidade dos setores de esquerda em reconstruir as condições subjetivas da ação revolucionária. No entanto, tais períodos de transição costumam apresentar estágios acentuados de desagregação antes que uma nova fusão se apresente.
Entre as tarefas de constituição destas condições subjetivas esta um urgente acerto de contas com a formulação estratégica da revolução brasileira, mais precisamente a superação definitiva da teoria da etapa da revolução democrática.
A teoria das etapas só tinha algum sentido no momento de transição tardia do feudalismo ao capitalismo, como no caso da Alemanha na década de 50 do século XIX. Pressupõe uma luta dos trabalhadores em aliança com a burguesia contra classes feudais e um Estado absolutista, em um estágio de baixo desenvolvimento das forças produtivas de tipo capitalista e em uma estrutura de classes de transição na qual se mesclam classes típicas das relações capitalistas e classes pré-capitalistas. No máximo a teoria das etapas poderia se justificar nos momentos iniciais da formação social capitalista no Brasil que apresentava condições que se desfizeram muito rapidamente a partir da década de 50.
O Brasil é um país capitalista de desenvolvimento monopolista avançado, como uma estrutura de classes capitalista, com um Estado Burguês moderno e extremamente eficiente, inserido plenamente na ordem capitalista mundial como um de seus pólos estratégicos. Isto implica que as contradições que se produzem em nossa sociedade são já contradições da ordem capitalista, não derivada de nenhum, atraso ou gargalo de desenvolvimento nacional produzido por permanência de setores ou interesses pré-capitalistas.
A constatação que se torna evidente é que estamos em uma etapa socialista da revolução. A simples afirmação disto não resolve o problema, como a própria experiência do PT nos ensinou. É necessário tirar as conseqüências práticas desta formulação, tanto nas táticas de alianças, como nas formas de luta econômica e política, como das táticas de luta eleitoral e institucional, assim como nos modelos de organização e vias de luta revolucionária.
As alianças estratégicas devem se pautar pelo objetivo principal de isolar a burguesia monopolista e seus aliados apresentando os interesses socialistas como o caminho de unificar toda a humanidade na luta por sua sobrevivência contra a iminente catástrofe que a permanência da ordem capitalista anuncia. A partir de agora toda luta, por mais específica que seja, já é uma luta anticapitalista e que deve assumir a forma de uma luta socialista.
Isto não significa a ausência de mediações táticas, mas, agora mais que nunca, a firmeza estratégica deve definir os limites da flexibilidade tática.
Dado o caráter anticapitalista imediato e socialista e projeto, dado a necessidade de isolar a burguesia e as foras capitalistas, dada à funcionalidade da ordem institucional burguesa para manter a dominação e perpetuar as condições da acumulação de capital, as forças revolucionárias devem construir espaços próprios de poder, com autonomia e independência de classe. Somente com base nesta autonomia é que se pode arriscar disputar espaços comuns na instuitucionalidade da ordem burguesa.
Disto deriva que o eixo estratégico é a constituição de espaços de poder popular acumulando para a constituição de um quadro de dualidade de poder que didatize o antagonismo dos projetos em luta, de um lado a permanência do capital, de outra a possibilidade de emancipação humana no socialismo. Até que ponto estes espaços vão ou não se mesclar com espaços institucionais ou postos ocupados na ordem institucional burguesa é uma questão que só a correlação de forças futura pode responder, no entanto, parece evidente que a perda da autonomia e independência de classe e a flexibilização da estratégia socialista é o caminho para a derrota da alternativa revolucionária.
V. Costurando o longo prazo através da ação política imediata: três movimentos nacionais e um destino
O caráter socialista da revolução brasileira, o fechamento definitivo do ciclo da suposta revolução democrática, implica em desafios práticos para os revolucionários. O ciclo que se fechou com o amoldamento do PT é na verdade é um fenômeno mais amplo.
A entrada em cena da classe trabalhadora no final dos anos 70 revelou uma fusão de classe que se expressou na criação de formas de organização, desde as mais imediatas até aquelas que alcançaram dimensão nacional. Entre estas últimas podemos destacar três: o próprio PT, a CUT e o MST.
Cada uma delas em seu campo sofreu um processo próprio de desenvolvimento, no entanto pertencem a um mesmo campo comum, qual seja, encontram-se nos limites de uma formulação democrática popular. Não porque houvesse uma superposição de seus quadros e direções, ainda que de fato houve, mas porque expressam um certo momento da luta de classes no Brasil e confluiu para a formulação de um grande projeto político que hegemonizou as lutas sociais nas últimas décadas.
Em síntese este projeto pode ser resumido na mobilização de setores sociais a partir de suas demandas específicas, organizá-los e colocá-los em luta por objetivos transformadores que deveriam culminar em uma alternativa socialista. Todos estes movimentos nacionais trabalhavam com o horizonte da proposta democrática popular e partilhavam de uma crítica às formulações democráticas nacionais como as do PCB (de forma menos enfática o MST).
Comungavam da certeza de que o acúmulo de forças nos movimentos sociais abriria a possibilidade de um governo democrático popular que iniciando reformas poderia levar a passagem para o socialismo.
Até pela incrível força e viabilidade política destes movimentos, foi alcançado patamares organizativos em uma dimensão que podemos mesmo considerar inédita na esquerda brasileira, não esquecendo que o PCB na década de 50 e 60 contava com uma estrutura organizativa considerável. Entretanto a não realização plena da estratégia democrática popular, as derrotas da classe trabalhadora nos anos 90, e a manutenção prolongada dos movimentos reivindicatórios, foram desenvolvendo uma compreensível tendência ao pragmatismo.
Ao lado deste processo vemos que a classe em luta que se fundiu e criou organizações, cada vez mais vê estas organizações se instituírem em espaços cristalizados, com normas, regulamentos e práticas que, no limite, tendem à burocracia.
Este não é um destino inescapável, mas o resultado da organização de uma classe que esperava ir além da ordem do capital construindo o socialismo, mas se vê obrigada a sobreviver por um tempo prolongado nos limites da ordem que queria negar.
O desfecho da trajetória do PT e da CUT fecham o ciclo de maneira didática e dramaticamente clara: amoldam-se e se transformam em instituições burocráticas da sociedade civil, ou seja, da sociedade burguesa. A grande pergunta passa a ser: e o MST.
Seria o MST o terceiro movimento nacional a seguir o caminho dos dois primeiros e acomodar-se? O primeiro de um novo ciclo que se abre?
A forma atual do MST é a própria situação paradoxal tencionada entre estas duas tendências, mas que pela materialidade tende ao acomodamente. A diferença é que parece haver, talvez de forma mais enfática que nos outros dois, uma resistência contra a tendência à burocratização e ao acomodamento.
Como não acreditamos que o desvio burocrático é causado pelo reformismo traidor das direções do PT e da CUT (ainda que haja pequenas e grandes traições e muito reformismo), não podemos acreditar que a resistência contra a deformação burocrática se deva às qualidades morais e revolucionárias de seus líderes. Parece que existe uma diferença de ordem qualitativa entre o PT e a CUT como expressão de uma burocracia partidária e sindical e a situação do MST como movimento de luta pela reforma agrária. A forma mais eficiente de cooptar o MST e selar seu desfecho burocrático é fazer a reforma agrária.
No entanto, a lógica atual da acumulação de capital no campo não exige mais esta “tarefa supostamente em atraso”, pelo contrário, a reforma agrária é uma ameaça ao pleno desenvolvimento do capitalismo no campo e a acumulação do agro negócio. Isto pode significar que o espaço de amoldamento, em se tratando do MST, é menor que aquele que a CUT e o PT encontram como instituições da sociedade civil-burguesa.
Ao mesmo tempo, todavia, a transformação gradativa da base social que luta pela terra em assentados, gera um tencionamento que acaba por produzir não poucos problemas no caráter e na dimensão do movimento, sendo, inegavelmente, um foco que tende a fortalecer o acomodamento burocrático e a política pragmática.
A questão de fundo e a mais relevante nesta atual contradição são a seguinte: a plena realização dos objetos imediatos daqueles que lutam pela terra, assim como daqueles que estão assentados, podem ser alcançados mantendo-se atual forma capitalista da sociedade brasileira? Não será possível supor que a permanência da lógica capitalista acabe por levar ao monopólio e a transnacionalizaçã o da estrutura agrária brasileira, o que destruirá qualquer condição de sobrevivência de uma agricultura cooperativizada, coletiva, familiar ou auto-sustentada?
O MST e a luta pela terra são um bom exemplo de nossa premissa de que de agora em diante toda luta por mais específica que seja, é já uma luta pelo socialismo. O MST fará, pelo menos assim esperamos, parte contraditória de dois processos: do encerramento do ciclo passado e da retomada das lutas que levarão a reunificação de nossa classe e da atualização do projeto socialista. Não podemos saber se mantendo a mesma forma, ou até que ponto passando por rupturas, mas as formas só existem como mediação de certos conteúdos que se precisam seguir seu movimento, rompem as velhas formas e criam novas.
No curto e médio prazo a esquerda, ainda muito debilitada, buscará se reorganizar, sofrerá ao lado da classe a derrota que se processou sobre ela, não aceitará o lugar entre as expressões políticas que se autonomizaram e participam do pacto das elites, por isso parecerá em um primeiro momento isolada. Mas buscará se credenciar para participar da próxima fusão que colocará nossa classe em movimento, não com a pretensão de dirigi-la, mas de constituir-se com ela e através dela, em vanguarda que apresente perante a humanidade, novamente e de forma revigorada, nossa alternativa socialista e comunista.
Mauro Luis Iasi
São Bernardo do Campo, maio de 2007.