Pelos repórteres do Der Spiegel*
Por todo o mundo, a alta dos preços dos alimentos tornou itens básicos como arroz e milho caros demais para muitas pessoas, levando os pobres às trincheiras porque não conseguem mais o suficiente para comer. Mas o pior ainda está por vir.
Fort Dimanche, um ex-presídio nas colinas acima da capital haitiana de Porto Príncipe, é um inferno na Terra. No passado, ele foi lar das câmaras de tortura dos esquadrões da morte do ex-ditador "Baby Doc" Duvalier, os Tontons Macoutes. Hoje, milhares de haitianos empobrecidos vivem no terreno da prisão, revirando pilhas de lixo em busca de alimento. Mas mesmo os cães encontram pouco para comer lá.
No telhado da antiga prisão, mulheres empreendedoras preparam algo que parece biscoito e até mesmo é chamado assim. O ingrediente chave, barro amarelo, vem de caminhão das montanhas próximas. O barro é combinado com sal e gordura vegetal para fazer a massa, que então é secada ao sol.
Para muitos haitianos, os biscoitos de barro são seu único alimento. Eles têm gosto de gordura, sugam a umidade da boca e deixam para trás um gosto de terra. Eles freqüentemente causam diarréia, mas eles ajudam a aplacar a dor da fome. "Eu espero algum dia ter alimento suficiente para comer, para que possa parar de comer estas coisas", disse Marie Noël, que sobrevive com seus sete filhos dos biscoitos de terra.
O barro para produzir 100 biscoitos custa US$ 5 e seu preço subiu US$ 1,50, ou cerca de 40%, em um ano. O mesmo vale para alimentos básicos. Todavia, a mesma quantidade de dinheiro compra mais bolos de barro do que pão ou tortilhas de milho. Uma tigela diária de arroz está quase fora das possibilidades.
A escassez de alimentos provocou revoltas no Haiti, na semana passada. Uma multidão de cidadãos famintos marchou por Porto Príncipe, atirando pedras e garrafas e cantando "Estamos com fome!" diante do palácio presidencial. Pneus foram queimados e pessoas morreram. Foi apenas mais uma das rebeliões que estão começando a ocorrer com freqüência cada vez maior por todo o mundo, mas que ainda são apenas um prenúncio do que está por vir.
O alimento está se tornando cada vez mais escasso e caro, e seu preço já o torna inacessível para muitas pessoas. As 200 pessoas mais ricas do mundo possuem tanto dinheiro quanto cerca de 40% da população global, mas 850 milhões de pessoas se deitam toda noite com fome. Esta calamidade é "uma das piores violações da dignidade humana", disse o ex-secretário- geral da ONU, Kofi Annan.
Deveríamos nos surpreender com o fato do desespero freqüentemente se transformar em violência? A crise dos alimentos aflige os pobres do mundo - na África, no Sul da Ásia e Oriente Médio - como uma praga bíblica. O preço de itens básicos como arroz, milho e trigo, que se manteve relativamente estável por anos, subiu mais de 180% nos últimos três anos. Um gargalo está se desenvolvendo, cujas conseqüências são potencialmente mais severas do que a crise global nos mercados financeiros. Sem nada a perder, pessoas à beira da inanição estão mais propensas a reagirem com fúria sem limites.
O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) trataram esta crise global em uma reunião conjunta no último fim de semana. Robert Zoellick, o presidente do Banco Mundial, alertou que a explosão dos preços dos alimentos ameaça causar instabilidade em pelo menos 33 países, incluindo potências regionais como Egito, Indonésia e Paquistão, onde o exército teve que ser chamado para proteger os transportes de farinha. A crise está ajudando os movimentos islâmicos radicais a ganharem força no Norte da África. Ocorreram turbulências nas últimas semanas na Mauritânia, Moçambique, Senegal, Costa do Marfim e Camarões, onde a violência já resultou em cerca de 100 mortes.
Há vários motivos para a crise dos alimentos:
- A população mundial está crescendo constantemente, enquanto a quantidade de terra arável está diminuindo.
- A mudança climática está causando uma perda de terras agrícolas, irreversível em alguns casos, em conseqüência de secas, enchentes, tempestades e erosão.
- Por causa da mudança de hábitos alimentares, mais e mais terra arável e florestas virgens estão sendo transformadas em pasto para rebanhos. A produtividade de calorias por hectare de terras dedicadas a pasto é substancialmente menor do que a de terras aráveis.
- O Banco Mundial estimula os países em desenvolvimento a promoverem reformas de mercado, incluindo a abolição das tarifas protecionistas, uma medida que freqüentemente causa grande dano à agricultura local.
-Os especuladores estão elevando os preços das matérias-primas. A alta resultante nos preços do petróleo leva ao cultivo de "plantações de energia", em vez de grãos para alimentos ou ração animal.
- Milhões de pessoas deslocadas por guerras civis precisam de alimento, mas elas não são mais capazes de produzir alimentos.
O que estamos começando a enfrentar não é apenas um gargalo agudo, mas uma crise mundial e fundamental de alimentos. Ela afeta a maioria dos pobres, que gastam uma parcela desproporcionalment e alta de sua renda em comida e água. A crise é tão terrível que está arruinando quaisquer progressos feitos nos últimos anos no combate à fome e doenças.
Com tantas pessoas e terras agrícolas insuficientes, uma luta pela distribuição das melhores terras está se formando, o que poderia se transformar em um novo conflito Norte-Sul. "Atualmente você ouve muito sobre a crise financeira mundial. Mas há outra crise mundial em andamento - e está prejudicando muito mais pessoas", escreveu recentemente o economista americano Paul Krugman em sua coluna regular no "New York Times".
Os mexicanos foram os primeiros a tomar as ruas, onde protestaram contra os preços mais altos da farinha de milho, o ingrediente básico das tortilhas. O México só consegue cobrir uma parte de sua demanda com produção doméstica. Ele importa o restante, principalmente dos Estados Unidos. Enquanto isso, mais e mais produtores rurais americanos estão vendendo seu milho para produtores de biocombustível, que pagam um preço mais alto pelo grão.
Para evitar maiores protestos, o presidente do México, Felipe Calderón, decidiu aumentar os subsídios do governo ao milho, que já eram altos. Mas apenas países que são relativamente fortes financeiramente podem fazer isso. Em outros países, como o Haiti, Bolívia, Argélia e Iêmen, as classes mais baixas foram duramente atingidas pela inflação nos preços dos alimentos.
'As pessoas estão morrendo diante de nossos olhos' No Iêmen, um país do Oriente Médio, as pessoas sobrevivem em média com US$ 1,86 por dia. O governo enfrenta os desafios de uma onda de refugiados da Somália, guerras tribais no norte e a ameaça constante de terrorismo. Desde fevereiro, o preço do trigo no Iêmen dobrou e o preço do arroz e óleo de cozinha aumentaram em um quinto. E desde o final de março, pessoas morreram no Iêmen em tumultos causados pelo preço do pão.
No último trimestre, os preços dos alimentos subiram 145% no Líbano e 20% na Síria. "Até mesmo a salsa, pela qual pagávamos quase nada no passado, repentinamente triplicou de preço", se queixou um morador de Damasco, a capital síria.
O Iraque e o Sudão, antes os "cestos de pão" do mundo árabe, atualmente dependem do Programa Mundial de Alimentos. Mais de um milhão de pessoas no Iraque e 2 milhões na região de Darfur necessitam de ajuda alimentar. A vida em Darfur, a província no oeste do Sudão, sempre foi difícil. O Saara tem avançado para o sul nas últimas quatro décadas, enquanto as chuvas diminuíram dramaticamente. A produção de sorgo, o grão mais importante da área, caiu em dois terços.
A guerra civil no Sudão deixou mais de 2 milhões de pessoas em campos de refugiados completamente dependentes de ajuda alimentar. Os campos na região não são cultivados há anos. "As pessoas estão morrendo diante dos nossos olhos, enquanto o mundo assiste", disse Johan van der Kamp, da organização alemã de ajuda humanitária Deutsche Welthungerhilfe.
Os países em desenvolvimento enfrentaram um desafio semelhante há mais de uma geração, que levou ao advento da chamada Revolução Verde. Por meio do uso de fertilizantes, pesticidas e sementes híbridas, os agricultores nos países em desenvolvimento conseguiram aumentar consideravelmente suas colheitas. Alguns acreditam que é hora de lançar uma segunda revolução verde. Os chefes de pesquisa dos conglomerados agrícolas estão convencidos de que a engenharia genética poderia ser a resposta aos problemas mundiais de alimentos. Mas a pergunta é: quanto tempo isso levaria?
A escassez de alimentos até mesmo se tornou um problema importante em áreas ricas, como Dubai, onde os supermercados prometeram não aumentar os preços de 20 alimentos básicos por pelo menos um ano. A meta, claramente, é impedir a insatisfação entre as legiões de operários de construção indianos e paquistaneses da cidade. Sem eles, os enormes hotéis, museus e ilhas artificiais que estão fazendo a fama mundial de Dubai não existiriam. Os trabalhadores estrangeiros recebem seus baixos salários em moeda local, o dirham, que está atrelado ao dólar em desvalorização.
Os beneficiários da globalização no Golfo não podem permitir tumultos causados por alimentos à sombra de seus arranha-céus e shopping centers. "As conseqüências do descontentamento, da raiva no Oriente Médio, podem ser mais geopolíticas do que em outros lugares", disse recentemente Robin Lodge, do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, para a agência de notícias "Reuters". Em nenhum outro lugar isso é mais verdadeiro do que no Egito.
Saad Ibrahim é dono de uma pequena lanchonete no Cairo, em um bairro atrás da Mesquita Al Azhar. Ele vende pratos como macarrão com molho de tomate com grão-de-bico e sua loja fica em um bom ponto. Todavia, a maioria dos fiéis agora passa rapidamente por sua lanchonete após as orações de sexta-feira. "Meus clientes diminuem a cada dia", disse Ibrahim.
No final do ano passado, uma tonelada de macarrão custava cerca de 1.500 libras egípcias, ou pouco mais de US$ 276. De lá para cá, os preços triplicaram. Ibrahim culpa o governo pela alta do preço. "Na condição de país agrícola, nós poderíamos plantar tudo nós mesmos, em vez de importar por muito dinheiro", ele disse.
Trinta e dois milhões da população de 80 milhões do Egito vivem com cerca de 1 euro (US$ 1,58) por dia, e 16 milhões vivem com ainda menos. Só o preço do óleo de cozinha subiu 40% no ano passado. A inflação saltou mais de 12% em fevereiro, e o preço mais alto do trigo teve um impacto particularmente adverso.
O "aish baladi", um pão chato e redondo macio, é a base da dieta egípcia. O Estado o subsidia há décadas, o que ajudou a manter a calma. Mas por quanto tempo mais este sistema funcionará? As filas estão ficando mais longas em frente às padarias que vendem o pão subsidiado, já que cada vez mais egípcios dependem da ajuda do governo. Tumultos nas últimas semanas resultaram em pelo menos 11 mortos, após padeiros corruptos terem vendido a farinha barata, subsidiada, a preços mais altos no mercado negro, provocando uma resposta irada da população.
Enquanto isso, o governo reservou US$ 2,5 bilhões de seu novo orçamento para os subsídios ao pão. Mas fornecer pão barato tem suas próprias conseqüências bizarras. Alguns produtores rurais estão alimentando seus rebanhos com pão por causa do preço exorbitante da ração animal.
A criação de gado é um negócio lucrativo, porque o aumento da renda em alguns países em desenvolvimento faz com que mais e mais consumidores possam pagar para comer carne. A nova classe média em Déli e Pequim não está mais satisfeita com as dietas tradicionais ricas em alimentos como arroz e lentilhas. Mas são necessários sete quilos de ração e vastas quantidades de água para produzir apenas um quilo de carne bovina, o que pressiona ainda mais os preços.
Na Jordânia, que conta com um sistema moderno de agricultura, o preço de alimentos básicos aumentou 60% em um ano. "Eu mal consigo vender meus hortifrutis" , disse Hussein Bureidi, um vendedor que opera uma barraca próxima da Grande Mesquita, em Amã, a capital da Jordânia. "Até onde isso irá?" O rei Abdullah teme um retorno aos tumultos por causa de alimentos de 1996, quando cidadãos enfurecidos entraram em choque com a polícia na cidade de Karak.
Na Argélia, os preços da gordura vegetal, óleo de milho, açúcar e farinha dobraram em seis meses. Com a exceção de um aumento inadequado de 15% nos salários dos funcionários públicos, o governo fez pouco para impedir o que a Rádio Argel chamou de "um ataque ao nosso padrão de vida". Até agora, as receitas do petróleo e do gás não foram usadas para financiar subsídios adicionais aos alimentos. Se o fizesse, o governo poderia se ver incapaz de pagar em dia o serviço de sua dívida externa.
Mas a Índia possui o maior número de pessoas que não se alimentam de forma suficiente, cerca de 220 milhões. Apropriadamente, duas conferências internacionais sobre a crise dos alimentos foram realizadas em Nova Déli na semana passada. Jacques Diouf, o chefe senegalês da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), atribuiu a culpa ao rápido crescimento na demanda tanto na China quanto na Índia. A crise, disse Diouf, poderia se expandir em uma catástrofe sem precedente.
A China tem perto de um quarto da população mundial para alimentar, mas apenas 7% de suas terras agrícolas. Uma situação semelhante se aplica à Índia. Isto significa que ambos os países precisam importar alimentos em grande escala, levando muitos países exportadores a impor cotas de exportação para que seus próprios cidadãos não fiquem repentinamente privados de alimentos.
Quando os pobres famintos do Haiti perderam o controle na semana passada, os Estados Unidos fecharam sua embaixada local por precaução. Os incidentes também alarmaram o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, que escreveu uma carta ao seu par japonês, Yasuo Fukuda, o atual presidente do G8. Na carta, Brown recomendou um esforço da comunidade internacional na preparação de uma "resposta plenamente coordenada" à fome desenfreada.
Ela não poderia vir mais cedo.
Fort Dimanche, um ex-presídio nas colinas acima da capital haitiana de Porto Príncipe, é um inferno na Terra. No passado, ele foi lar das câmaras de tortura dos esquadrões da morte do ex-ditador "Baby Doc" Duvalier, os Tontons Macoutes. Hoje, milhares de haitianos empobrecidos vivem no terreno da prisão, revirando pilhas de lixo em busca de alimento. Mas mesmo os cães encontram pouco para comer lá.
No telhado da antiga prisão, mulheres empreendedoras preparam algo que parece biscoito e até mesmo é chamado assim. O ingrediente chave, barro amarelo, vem de caminhão das montanhas próximas. O barro é combinado com sal e gordura vegetal para fazer a massa, que então é secada ao sol.
Para muitos haitianos, os biscoitos de barro são seu único alimento. Eles têm gosto de gordura, sugam a umidade da boca e deixam para trás um gosto de terra. Eles freqüentemente causam diarréia, mas eles ajudam a aplacar a dor da fome. "Eu espero algum dia ter alimento suficiente para comer, para que possa parar de comer estas coisas", disse Marie Noël, que sobrevive com seus sete filhos dos biscoitos de terra.
O barro para produzir 100 biscoitos custa US$ 5 e seu preço subiu US$ 1,50, ou cerca de 40%, em um ano. O mesmo vale para alimentos básicos. Todavia, a mesma quantidade de dinheiro compra mais bolos de barro do que pão ou tortilhas de milho. Uma tigela diária de arroz está quase fora das possibilidades.
A escassez de alimentos provocou revoltas no Haiti, na semana passada. Uma multidão de cidadãos famintos marchou por Porto Príncipe, atirando pedras e garrafas e cantando "Estamos com fome!" diante do palácio presidencial. Pneus foram queimados e pessoas morreram. Foi apenas mais uma das rebeliões que estão começando a ocorrer com freqüência cada vez maior por todo o mundo, mas que ainda são apenas um prenúncio do que está por vir.
O alimento está se tornando cada vez mais escasso e caro, e seu preço já o torna inacessível para muitas pessoas. As 200 pessoas mais ricas do mundo possuem tanto dinheiro quanto cerca de 40% da população global, mas 850 milhões de pessoas se deitam toda noite com fome. Esta calamidade é "uma das piores violações da dignidade humana", disse o ex-secretário- geral da ONU, Kofi Annan.
Deveríamos nos surpreender com o fato do desespero freqüentemente se transformar em violência? A crise dos alimentos aflige os pobres do mundo - na África, no Sul da Ásia e Oriente Médio - como uma praga bíblica. O preço de itens básicos como arroz, milho e trigo, que se manteve relativamente estável por anos, subiu mais de 180% nos últimos três anos. Um gargalo está se desenvolvendo, cujas conseqüências são potencialmente mais severas do que a crise global nos mercados financeiros. Sem nada a perder, pessoas à beira da inanição estão mais propensas a reagirem com fúria sem limites.
O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) trataram esta crise global em uma reunião conjunta no último fim de semana. Robert Zoellick, o presidente do Banco Mundial, alertou que a explosão dos preços dos alimentos ameaça causar instabilidade em pelo menos 33 países, incluindo potências regionais como Egito, Indonésia e Paquistão, onde o exército teve que ser chamado para proteger os transportes de farinha. A crise está ajudando os movimentos islâmicos radicais a ganharem força no Norte da África. Ocorreram turbulências nas últimas semanas na Mauritânia, Moçambique, Senegal, Costa do Marfim e Camarões, onde a violência já resultou em cerca de 100 mortes.
Há vários motivos para a crise dos alimentos:
- A população mundial está crescendo constantemente, enquanto a quantidade de terra arável está diminuindo.
- A mudança climática está causando uma perda de terras agrícolas, irreversível em alguns casos, em conseqüência de secas, enchentes, tempestades e erosão.
- Por causa da mudança de hábitos alimentares, mais e mais terra arável e florestas virgens estão sendo transformadas em pasto para rebanhos. A produtividade de calorias por hectare de terras dedicadas a pasto é substancialmente menor do que a de terras aráveis.
- O Banco Mundial estimula os países em desenvolvimento a promoverem reformas de mercado, incluindo a abolição das tarifas protecionistas, uma medida que freqüentemente causa grande dano à agricultura local.
-Os especuladores estão elevando os preços das matérias-primas. A alta resultante nos preços do petróleo leva ao cultivo de "plantações de energia", em vez de grãos para alimentos ou ração animal.
- Milhões de pessoas deslocadas por guerras civis precisam de alimento, mas elas não são mais capazes de produzir alimentos.
O que estamos começando a enfrentar não é apenas um gargalo agudo, mas uma crise mundial e fundamental de alimentos. Ela afeta a maioria dos pobres, que gastam uma parcela desproporcionalment e alta de sua renda em comida e água. A crise é tão terrível que está arruinando quaisquer progressos feitos nos últimos anos no combate à fome e doenças.
Com tantas pessoas e terras agrícolas insuficientes, uma luta pela distribuição das melhores terras está se formando, o que poderia se transformar em um novo conflito Norte-Sul. "Atualmente você ouve muito sobre a crise financeira mundial. Mas há outra crise mundial em andamento - e está prejudicando muito mais pessoas", escreveu recentemente o economista americano Paul Krugman em sua coluna regular no "New York Times".
Os mexicanos foram os primeiros a tomar as ruas, onde protestaram contra os preços mais altos da farinha de milho, o ingrediente básico das tortilhas. O México só consegue cobrir uma parte de sua demanda com produção doméstica. Ele importa o restante, principalmente dos Estados Unidos. Enquanto isso, mais e mais produtores rurais americanos estão vendendo seu milho para produtores de biocombustível, que pagam um preço mais alto pelo grão.
Para evitar maiores protestos, o presidente do México, Felipe Calderón, decidiu aumentar os subsídios do governo ao milho, que já eram altos. Mas apenas países que são relativamente fortes financeiramente podem fazer isso. Em outros países, como o Haiti, Bolívia, Argélia e Iêmen, as classes mais baixas foram duramente atingidas pela inflação nos preços dos alimentos.
'As pessoas estão morrendo diante de nossos olhos' No Iêmen, um país do Oriente Médio, as pessoas sobrevivem em média com US$ 1,86 por dia. O governo enfrenta os desafios de uma onda de refugiados da Somália, guerras tribais no norte e a ameaça constante de terrorismo. Desde fevereiro, o preço do trigo no Iêmen dobrou e o preço do arroz e óleo de cozinha aumentaram em um quinto. E desde o final de março, pessoas morreram no Iêmen em tumultos causados pelo preço do pão.
No último trimestre, os preços dos alimentos subiram 145% no Líbano e 20% na Síria. "Até mesmo a salsa, pela qual pagávamos quase nada no passado, repentinamente triplicou de preço", se queixou um morador de Damasco, a capital síria.
O Iraque e o Sudão, antes os "cestos de pão" do mundo árabe, atualmente dependem do Programa Mundial de Alimentos. Mais de um milhão de pessoas no Iraque e 2 milhões na região de Darfur necessitam de ajuda alimentar. A vida em Darfur, a província no oeste do Sudão, sempre foi difícil. O Saara tem avançado para o sul nas últimas quatro décadas, enquanto as chuvas diminuíram dramaticamente. A produção de sorgo, o grão mais importante da área, caiu em dois terços.
A guerra civil no Sudão deixou mais de 2 milhões de pessoas em campos de refugiados completamente dependentes de ajuda alimentar. Os campos na região não são cultivados há anos. "As pessoas estão morrendo diante dos nossos olhos, enquanto o mundo assiste", disse Johan van der Kamp, da organização alemã de ajuda humanitária Deutsche Welthungerhilfe.
Os países em desenvolvimento enfrentaram um desafio semelhante há mais de uma geração, que levou ao advento da chamada Revolução Verde. Por meio do uso de fertilizantes, pesticidas e sementes híbridas, os agricultores nos países em desenvolvimento conseguiram aumentar consideravelmente suas colheitas. Alguns acreditam que é hora de lançar uma segunda revolução verde. Os chefes de pesquisa dos conglomerados agrícolas estão convencidos de que a engenharia genética poderia ser a resposta aos problemas mundiais de alimentos. Mas a pergunta é: quanto tempo isso levaria?
A escassez de alimentos até mesmo se tornou um problema importante em áreas ricas, como Dubai, onde os supermercados prometeram não aumentar os preços de 20 alimentos básicos por pelo menos um ano. A meta, claramente, é impedir a insatisfação entre as legiões de operários de construção indianos e paquistaneses da cidade. Sem eles, os enormes hotéis, museus e ilhas artificiais que estão fazendo a fama mundial de Dubai não existiriam. Os trabalhadores estrangeiros recebem seus baixos salários em moeda local, o dirham, que está atrelado ao dólar em desvalorização.
Os beneficiários da globalização no Golfo não podem permitir tumultos causados por alimentos à sombra de seus arranha-céus e shopping centers. "As conseqüências do descontentamento, da raiva no Oriente Médio, podem ser mais geopolíticas do que em outros lugares", disse recentemente Robin Lodge, do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, para a agência de notícias "Reuters". Em nenhum outro lugar isso é mais verdadeiro do que no Egito.
Saad Ibrahim é dono de uma pequena lanchonete no Cairo, em um bairro atrás da Mesquita Al Azhar. Ele vende pratos como macarrão com molho de tomate com grão-de-bico e sua loja fica em um bom ponto. Todavia, a maioria dos fiéis agora passa rapidamente por sua lanchonete após as orações de sexta-feira. "Meus clientes diminuem a cada dia", disse Ibrahim.
No final do ano passado, uma tonelada de macarrão custava cerca de 1.500 libras egípcias, ou pouco mais de US$ 276. De lá para cá, os preços triplicaram. Ibrahim culpa o governo pela alta do preço. "Na condição de país agrícola, nós poderíamos plantar tudo nós mesmos, em vez de importar por muito dinheiro", ele disse.
Trinta e dois milhões da população de 80 milhões do Egito vivem com cerca de 1 euro (US$ 1,58) por dia, e 16 milhões vivem com ainda menos. Só o preço do óleo de cozinha subiu 40% no ano passado. A inflação saltou mais de 12% em fevereiro, e o preço mais alto do trigo teve um impacto particularmente adverso.
O "aish baladi", um pão chato e redondo macio, é a base da dieta egípcia. O Estado o subsidia há décadas, o que ajudou a manter a calma. Mas por quanto tempo mais este sistema funcionará? As filas estão ficando mais longas em frente às padarias que vendem o pão subsidiado, já que cada vez mais egípcios dependem da ajuda do governo. Tumultos nas últimas semanas resultaram em pelo menos 11 mortos, após padeiros corruptos terem vendido a farinha barata, subsidiada, a preços mais altos no mercado negro, provocando uma resposta irada da população.
Enquanto isso, o governo reservou US$ 2,5 bilhões de seu novo orçamento para os subsídios ao pão. Mas fornecer pão barato tem suas próprias conseqüências bizarras. Alguns produtores rurais estão alimentando seus rebanhos com pão por causa do preço exorbitante da ração animal.
A criação de gado é um negócio lucrativo, porque o aumento da renda em alguns países em desenvolvimento faz com que mais e mais consumidores possam pagar para comer carne. A nova classe média em Déli e Pequim não está mais satisfeita com as dietas tradicionais ricas em alimentos como arroz e lentilhas. Mas são necessários sete quilos de ração e vastas quantidades de água para produzir apenas um quilo de carne bovina, o que pressiona ainda mais os preços.
Na Jordânia, que conta com um sistema moderno de agricultura, o preço de alimentos básicos aumentou 60% em um ano. "Eu mal consigo vender meus hortifrutis" , disse Hussein Bureidi, um vendedor que opera uma barraca próxima da Grande Mesquita, em Amã, a capital da Jordânia. "Até onde isso irá?" O rei Abdullah teme um retorno aos tumultos por causa de alimentos de 1996, quando cidadãos enfurecidos entraram em choque com a polícia na cidade de Karak.
Na Argélia, os preços da gordura vegetal, óleo de milho, açúcar e farinha dobraram em seis meses. Com a exceção de um aumento inadequado de 15% nos salários dos funcionários públicos, o governo fez pouco para impedir o que a Rádio Argel chamou de "um ataque ao nosso padrão de vida". Até agora, as receitas do petróleo e do gás não foram usadas para financiar subsídios adicionais aos alimentos. Se o fizesse, o governo poderia se ver incapaz de pagar em dia o serviço de sua dívida externa.
Mas a Índia possui o maior número de pessoas que não se alimentam de forma suficiente, cerca de 220 milhões. Apropriadamente, duas conferências internacionais sobre a crise dos alimentos foram realizadas em Nova Déli na semana passada. Jacques Diouf, o chefe senegalês da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), atribuiu a culpa ao rápido crescimento na demanda tanto na China quanto na Índia. A crise, disse Diouf, poderia se expandir em uma catástrofe sem precedente.
A China tem perto de um quarto da população mundial para alimentar, mas apenas 7% de suas terras agrícolas. Uma situação semelhante se aplica à Índia. Isto significa que ambos os países precisam importar alimentos em grande escala, levando muitos países exportadores a impor cotas de exportação para que seus próprios cidadãos não fiquem repentinamente privados de alimentos.
Quando os pobres famintos do Haiti perderam o controle na semana passada, os Estados Unidos fecharam sua embaixada local por precaução. Os incidentes também alarmaram o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, que escreveu uma carta ao seu par japonês, Yasuo Fukuda, o atual presidente do G8. Na carta, Brown recomendou um esforço da comunidade internacional na preparação de uma "resposta plenamente coordenada" à fome desenfreada.
Ela não poderia vir mais cedo.
Fonte: *Rüdiger Falksohn; Amira El Ahl, Jens Glüsing, Alexander Jung, Padma Rao, Thilo Thielke, Volkhard Windfuhr e Bernhard Zand - Der Spiegel, em 15-4-08
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